Teologia Moral Vaishnava e Homossexualidade.

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Teologia Moral Vaishnava e Homossexualidade.

Por Hrdayananda das Gosvami Acaryadeva.

Califórnia, EUA, Fevereiro de 2005

Recomendei recentemente que a ISKCON aprecie e reconheça os sinceros esforços de todos os devotos que: a) empenham-se sinceramente em serem conscientes de Krishna; b) não podem ser celibatários, e, desta forma, c) escolhem a monogamia, preferivelmente à promiscuidade, como uma estratégia para controle dos sentidos e renúncia gradual. O papel da sexualidade em uma sociedade espiritual é claramente uma questão moral, a qual deve ser entendida dentro de um contexto mais amplo da filosofia moral vaishnava, como encontramos em escrituras vaishnavas autorizadas.

  1. JUSTIÇA E COMPAIXÃO

Como em toda sociedade, conflitos morais ocorrem na cultura Védica, freqüentemente envolvendo uma tensão entre princípios morais de justiça e compaixão. De fato, encontramos exemplos disto nos próprios passatempos do Senhor Krishna, geralmente resultando numa tentativa de encontrar um equilíbrio entre justiça e compaixão. Em ambas as histórias, de Asvatthama e Rukmi, encontramos a justiça temperada pela misericórdia, resultando numa ação de justiça misericordiosa, a qual não obedece aos estritos textos da lei.

  1. DEVERES MORAIS CONFLITANTES

O ponto chave aqui é que circunstâncias práticas apresentaram conflitos morais aparentemente insolúveis para uma família boa, brahmínica e védica. O dever moral da família não lhes era absolutamente claro, e eles não podiam concordar no que fazer, já que cada ato moral possível parecia violar outro dever moral de igual importância.

  1. IDEAL VS REAL

Outra tensão moral encontrada em toda sociedade surge da inevitável lacuna entre ideal e real. A cultura védica ensina os mais elevados princípios morais e espirituais, mas também engaja a natureza prática humana com uma notável franqueza e realismo. …o dharma é usado para regular as duas mais apaixonadas, e assim mais perigosas, atividades humanas: sexo e violência. A fim de entender claramente a abordagem védica às questões morais, devemos observar a maneira que a cultura védica lida com o sexo e a violência. Como declarado acima, em virtude destas duas atividades gerarem a mais desenfreada paixão nos seres humanos, são precisamente estas duas atividades que mais ameaçam a ordem moral e espiritual na sociedade, e as quais, portanto, devem ser reguladas pelo dharma, moralidade. Para ilustrar a madura complexidade da abordagem védica às questões morais, consideremos exemplos da abordagem védica à violência, na forma de caça, e, ao sexo, na forma de poligamia. Perceberemos, em cada caso, que a cultura védica ensina princípios morais ideais, no entanto, ao mesmo tempo, reconhece a real natureza humana e cria um espaço cultural para pessoas sinceras que não podem praticar o ideal. É justo concluir que a cultura védica encontra aqui um ponto de equilíbrio entre o ideal e o real. O ideal é claramente ahimsa. O “real”, entretanto, é que ao longo da história registrada por todo o mundo, guerreiros caçam. E, ao longo da história, nós verificamos que guerreiros de fato não limitam sua caça ao mínimo necessário para aprimorar suas habilidades essenciais como protetores da humanidade. Desse modo, encontramos a seguinte estratégia moral apropriada: 1. O ideal é prescrito. 2. Aquilo que viola o ideal é proibido. 3. Uma concessão é feita para aqueles que simplesmente não podem ou não seguirão o ideal. 4. Aqueles que recebem essa concessão, não obstante, são aceitos dentro da sociedade. 5. Os perigos e repercussões em aceitar esta concessão são claramente indicados. A história do mundo ensina que os guerreiros e governantes do começo dos tempos procuraram desfrutar muitas mulheres. Uma proibição absoluta da caça, ou de múltiplos parceiros sexuais, entre os governantes, somente conduziria à difusão da hipocrisia, o que debilitaria seriamente a força da lei e escritura Védicas. Para evitar isso, a cultura védica ensina o ideal e, dentro de limites apropriados, acomoda o real. Encontramos um outro exemplo de uma estratégia realista para lidar com o desejo humano por sexo dentro da própria ISKCON. No Bhagavad-Gita 9.27, o Senhor Krishna ensina claramente que nós devemos executar todos os atos como uma oferenda a Ele. 2 Krishna também declara no 7.11 que Ele está presente na sexualidade que não se opõe ao dharma, moralidade. Srila Prabhupada explicou repetidamente que os devotos oferecem suas vidas sexuais a Krishna procriando crianças conscientes de Krishna. Assim, num senso estrito, todos os devotos iniciados devem prometer abandonar o sexo ilícito, i.e. o sexo que não é para a procriação. Isto é o ideal, entretanto, não é o real. A situação real na ISKCON é que muitos, realmente muitos, chefes de família seguem o mais fácil, a versão menos ideal da regra: não praticar sexo fora do casamento. O próprio Prabhupada, algumas vezes, ensinou tanto o ideal quanto, em muitas outras, a versão “real” dessa regra, a versão que eles podem realmente seguir. As escrituras védicas ensinam que matar animais inocentes é de fato um pecado. Mas, porque Mrgari era um caçador, sua ofensa era alpa, “pequena”. O pecado é relativo ao pecador.

  1. ATOS E CONSEQÜÊNCIAS

Afora as inevitáveis tensões morais entre justiça e misericórdia, e entre o ideal e o real, podemos observar ainda nas escrituras Védicas duas filosofias morais distintas, uma moralidade fundamentalmente no ato em si, e a outra buscando a moralidade fundamentalmente nas conseqüências dos atos. Ambas as visões são bem conhecidas para os filósofos ocidentais pelos nomes de ética deontológica e conseqüêncialismo. O próprio Krishna explica então a Arjuna o significado dessas duas histórias: “É difícil alcançar o mais elevado entendimento [da moralidade]. Verifica-se isso pelo raciocínio. Nessas circunstâncias, há muitas pessoas que simplesmente alegam que ‘a moralidade é escritura’. Embora Eu não Me oponha a esta visão, as escrituras não oferecem regras para todo caso”. [8] O Senhor não Se opõe à noção de que as regras das escrituras governam a moralidade, entretanto, as regras por si mesmas não são suficientes. Deve-se analisar racionalmente os casos individuais e deve- se compreender as sutilezas da vida real. Não se pode compreender as sutilezas da moralidade, a menos que se entenda o propósito da moralidade. Enquanto Bhishma estava deitado na cama de flechas, Yudhisthira perguntou sobre moralidade (dharma). Significativamente, a verdade sobre a moralidade não era óbvia mesmo para o rei da moralidade, Yudhisthira. 3 A verdade não deve ser falada e a falsidade deve ser falada num caso onde a falsidade torna-se verdade e verdade torna-se falsidade. Uma pessoa imatura é confundida em tal caso, onde a verdade não é firmemente estabelecida. Moralidade é aquilo que evita prejuízo para os seres vivos. Esta é a conclusão. A moralidade (dharma) vem do ato de manter (dharana). Assim, as autoridades dizem que a moralidade mantém os seres vivos. Desta forma, aquilo que proporciona tal manutenção é dharma. Esta é a conclusão. Aqui Bhishma repete os pontos básicos da filosofia moral védica ensinada pelo próprio Krishna: 1. Para entender o que é comportamento moral, não podemos, em cada caso, simplesmente citar as regras morais das escrituras. 2. Deve-se também raciocinar sobre moralidade. 3. Em tal raciocínio, deve-se levar em consideração que todo o propósito dos princípios morais é beneficiar as pessoas. 4. Às vezes, pessoas boas, externamente, praticam más ações. 5. Às vezes, pessoas más, externamente, praticam boas ações. 6. Em tais casos, deve-se olhar para além das aparências para ver o que realmente produz boas conseqüências.

  1. TENSÃO ENTRE SOCIEDADE E INDIVÍDUO.

Srila Prabhupada insistiu para todos nós trabalharmos cooperativamente dentro da ISKCON, e ao mesmo tempo ele lutava contra a centralização e a burocratização precisamente porque elas reprimem a liberdade individual, inspiração e criatividade, tudo o que é essencial na vida espiritual. Por um lado, uma sociedade consciente de Krishna deve preservar ideais espirituais eternos: o objetivo de cada vida é aproximar-se de Krishna, o Senhor Supremo. Por outro lado, toda sociedade funcional deve criar espaço cultural e social para os membros sinceros que, inevitavelmente, lutam com a realidade extremamente imperfeita da vida condicionada. A sociedade deve compreender que pessoas boas e sinceras muitas vezes falham em cumprir os ideais da sociedade e que a sociedade, em última análise, existe para encorajar e facilitar a luta da alma por consciência de Krsna. Uma sociedade consciente de Krishna deve levar em consideração que as almas condicionadas seguem os ideais espirituais apenas parcialmente e imperfeitamente. Portanto, para aqueles não muito avançados na vida espiritual, o progresso em direção ao ideal freqüentemente envolve concessões avaliadas de acordo com os impulsos irreprimíveis e necessidades do corpo material. 4 O indivíduo também não deve tomar a sociedade por padrões impossíveis, ideais. Assim como o indivíduo geralmente falhará em cumprir os ideais da sociedade, da mesma forma, a sociedade muitas vezes fallará em cumprir as expectativas do indivíduo em relação a ela. Deste modo, uma sociedade intolerante deve, em última análise, tornar-se ela mesma uma vítima da intolerância de seus membros para com as inevitáveis falhas desta mesma sociedade.

  1. ESCRITURAS E HOMOSSEXUALIDADE

Assim, ao tentar entender como a ISKCON deveria lidar com a homossexualidade, devemos primeiro fazer esta pergunta: Fornecem as escrituras védicas vaishnavas regras específicas e explicitamente não ambíguas para lidar com a homossexualidade, ou, se não, devemos chegar a uma conclusão através de nossa própria maneira de raciocinar? Notavelmente, nem o Gita, tampouco o Bhagavatam, dão uma única referência explícita à homossexualidade mutuamente consensual. Muito embora seja dito que a homossexualidade tenha existido desde o início da criação, o Bhagavatam não a descreve explicitamente nem a condena. Portanto, de acordo com a própria declaração de Krishna [MB 8.49.49], uma vez que não encontramos um estabelecimento de regras específicas, explícitas e não-ambíguas para a conduta em relação à homossexualidade, devemos nos empenhar em um raciocínio espiritual sobre isto.

  1. RACIOCÍNIO MORAL ACERCA DA HOMOSSEXUALIDADE

Desse modo, podemos dizer que o padrão absoluto, objetivo e eterno para relacionamentos conjugais é que tal relacionamento deveria desenvolver-se entre um homem e uma mulher que possuam, respectivamente, qualidades masculinas e femininas tanto no corpo quanto na mente. Além disto, tal relacionamento conjugal deve ser dedicado ao transcendental serviço devocional e deve em última análise visar ao amor espiritual puro, livre de luxúria material. Neste mundo, encontramos algum nível de impureza em quase todo relacionamento conjugal. Entretanto, a união apropriada entre homem e mulher, em corpo e mente, mesmo neste mundo imperfeito é, em um sentido, um reflexo mais próximo do padrão eterno do que aquele que encontramos em sexualidades irregulares que não refletem padrões absolutos. O Senhor Krishna declara no Bhagavad-Gita 7.11, que Ele está presente na sexualidade que não se opõe ao dharma. Srila Prabhupada ensina que o sexo é, em última análise, destinado à procriação devotada ao serviço a Deus. Mesmo se a maioria dos devotos grhastas lutam com este padrão e, na prática, restringem-se à versão mais fácil da regra – não praticar sexo fora do casamento – o padrão mais elevado ainda é o ideal ao qual todos os devotos sérios deveriam aspirar. O fato de muitos ou mesmo a maioria dos grhasthas acharem difícil agir sempre na plataforma ideal não invalida de modo algum, nem mesmo diminui, o valor do ideal. Um exemplo mundano serve para ilustrar este ponto: porque a sociedade americana, mesmo em face da disseminada hipocrisia, preservou o ideal de igualdade social e legal, o movimento dos Direitos Civis Americanos (American Civil Rights movement) foi capaz de apelar a este ideal na busca por justiça racial. Similarmente, é essencial para o progresso de seus membros que a ISKCON preserve o ideal espiritual de sexo para procriação entre um homem e uma mulher adequados, que estejam unidos pelos votos sagrados do matrimônio. Mas como a ISKCON deveria lidar com a homossexualidade? Consideremos o assunto à luz da filosofia moral vaishnava, enfocando as diversas tensões morais que devem ser equilibradas.

  1. CONCLUSÃO

Embora que, até certo ponto, haja tensão entre os desejos e necessidades da sociedade e aqueles do indivíduo, devemos, em última análise, descobrir um modo de encorajar e inspirar os devotos individuais com dificuldades especiais e, ao mesmo tempo, manter a santidade do padrão dos princípios morais e espirituais. A ISKCON deve equilibrar justiça e misericórdia, o ideal e o real. A ISKCON deve defender a importância dos atos morais, mas a ISKCON deve também fazer aquilo que produzirá conseqüências benéficas. Prabhupada enfatiza que a consciência de Krsna é um processo gradual. Ele ensinou isto, literalmente, centenas de vezes. “Todos devem purificar o coração por um processo gradual, não abruptamente.” [Bg 3.35, Significado] Algumas pessoas acham que encorajar a monogamia gay é encorajar a homossexualidade. Para testar este argumento, apliquemo-lo a uma outra atividade pecaminosa: abuso de drogas. De fato, há muitos vaishnavas sinceros ao redor do mundo que lutam contra alguma forma de abuso de substância. Se a ISKCON seguir o exemplo de outras religiões e oferecer programas para ajudar membros fiéis a superar tais problemas, e se os devotos recuperados são elogiados e encorajados quando reduzem seu uso de drogas, isto significa que a ISKCON está encorajando, admitindo ou justificando o uso de drogas? Obviamente não. Similarmente, encorajar devotos que estão lutando para regular, reduzir e eliminar a sexualidade pecaminosa de qualquer espécie não é elogiar ou encorajar atividades pecaminosas. A verdade é o oposto: nós estamos elogiando e encorajando a redução e a eliminação gradual de tais atividades. No caso de um casal de devotos grhasthas, o sexo dentro do casamento, mas não destinado à procriação, é claramente pecaminoso, pelo menos num senso estrito. Embora algumas vezes os devotos declarem que “não praticar sexo ilícito” significa “não praticar sexo fora do casamento”, na verdade este é o padrão que muitos respeitados grhasthas são capazes de seguir. Por que então nós admitimos um ato sexual o qual é, no senso mais estrito, pecaminoso? Certamente porque este é o menor de dois males, o maior mal sendo o sexo fora do casamento. Surge então a questão: a diretriz de escolher dos males o menor é valida somente para heterossexuais, ou esta é também uma estratégia necessária para homossexuais? Leve em consideração que Prabhupada enfatiza que a consciência de Krsna é um processo gradual, é um processo que prossegue lentamente, passo a passo. A noção de um processo gradual logicamente acarreta a noção ulterior de que os passos graduais na direção certa são apenas isto: passos na direção certa. E, uma sociedade espiritual deve encorajar todos seus membros a darem passos na direção certa. Finalmente, devemos levar em consideração o princípio moral último, encontrado no Padma Purana e citado no Sri Caitanya Caritamrta 2.22.113: “Vishnu deve ser sempre lembrado e jamais esquecido. Todas as injunções e proibições só podem ser servas dessas duas.” [23] Similarmente, o próprio Senhor Krishna declara no final do Gita, 18.66: “Abandone todos os princípios morais/religiosos e venha a Mim exclusivamente por abrigo. Eu te protegerei de todas as reações pecaminosas. Não temas!” Portanto, considerando a filosofia moral vaishnava, como ensinada pelo próprio Krishna e por Seus devotos puros, a ISKCON deve encorajar os devotos sinceros que, às vezes, de boa fé e dentro de limites racionais, escolhem dos males o menor a fim de se estabilizarem no caminho espiritual. Este princípio aplica-se a sexualidade humana mutuamente consentida entre adultos.

____________ *Este resumo de citações visa facilitar a compreensão do artigo em virtude da extensão do mesmo. É composto apenas de fragmentos do artigo considerados por mim como relevantes para uma compreensão rápida do conteúdo. Não substitui, é claro, a versão completa do mesmo que pode ser baixada gratuitamente em: http://www.acharyadeva.com/pdf/Teologia_Moral_Vaishnava.pdf Compilação: David Britto radhesyamaji@yahoo.com.br 7 Em: 23/04/2005

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