Francisco A. Duarte
Filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
Nascimento e infância: por mais que vivamos
“PRÉ-MATURO – Vamos lá, vamos lá – quando foi que você nasceu?
EM MATURAÇAO – Calma! Eu já ia chegar lá.”
(Bion, 1975-1979/1996b, p. 02 )
Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) nasceu na cidade de Mathura, Estado indiano de Uttar Pradesh, mesmo local onde milhares de anos antes teria reencarnado Krishna, considerado, na Índia, a encarnação mais humana do deus Vishnu. Localizada às margens serenas do rio Yamuna, Mathura respira adoração a Krishna, há milhares de anos venerado como seu protetor. Seus santos ghats, assim como diversos pontos da cidade, refletem o fervor religioso da população local, em sua maioria formada por vaishnavas (devotos de Vishnu).
O primeiro nome de Bion foi herdado do avô materno, Wilfred Tresillian Kemp, casado com Emma Louisa Kemp. O segundo nome e sobrenome, ele herdou do avô paterno, Ruprecht Bion, casado com Leah Robinson. Nascido em uma família próspera de classe média alta – o pai, Frederick Fleetwood Bion, era um engenheiro civil de sucesso –, Wilfred Bion e a irmã Edna Bion eram cuidados pela mãe, Rhoda Salter Kemp, e por uma ayah (“babá”) indiana.
Bion considerava a mãe “um pouco assustadora”, pois, segundo ele, ela tinha mudanças súbitas de humor. Às vezes, quando estava confortavelmente instalado em seu colo, recebendo o calor e o conforto desejados, repentinamente se via diante de uma pessoa “fria e amedrontadora”, como quando uma corrente de ar fria se infiltra na atmosfera quente da capela em meio a uma reza (Bléandonu, 1993, p. 19).
O nascimento da irmã Edna, dividindo com os pais a já pouca atenção que ele recebia, e a relação um tanto distante com sua mãe fizeram com que a ayah ganhasse importância no desenvolvimento infantil, cultural e religioso de Bion. A babá cuidou dele até aproximadamente os 7 anos de idade, isto é, na primeira infância e, portanto, período mais importante na constituição da vida mental.
É provável que os cuidados e brincadeiras da ayah – canções de ninar, mantras e histórias de Krishna que ela contava ao pequeno Bion, revelando o comportamento humanizado de seus deuses, ora amantes erotizados, ora guerreiros; e os milenares templos, pinturas, esculturas que ela lhe apresentava – tiveram penetração profunda e íntima na mente de Bion, despertando seu interesse pela filosofia indiana.
Apesar das alusões que Bion faz ao Bhagava gītā em seu pensamento – vértice que este artigo busca relevar –, devemos enfatizar que as ideias do psicanalista anglo- indiano se fundamentam, essencialmente, nas teorias de Sigmund Freud, cuja leitura de suas obras o despertou para a psicanálise, e Melanie Klein, que Bion conheceu tanto por meio de seus trabalhos teóricos como sendo analisando dela.
Como muitos de seus leitores sabem, o psicanalista nunca escondeu a influência que sofreu do livro sagrado dos hindus, o Bhagavad gītā (“Canção do Senhor”), citando-o em várias oportunidades, entre elas, nas Conferências Brasileiras:
“Do mesmo modo, é improvável que o método mais profundo de investigação conhecido por nós – a psicanálise – esteja fazendo mais do que arranhar a superfície. Não surpreendente, portanto, que pessoas com uma concepção predominantemente religiosa afirmem haver certas experiências que independem da mente humana; como dizer que Deus é simplesmente uma projeção do pai da família, como ele nos pareceu para nós na infância ou na meninice, é irrelevante e nada tem que ver com Deus da realidade; que é uma interpretação humana que extingue a crença religiosa, transformando-a numa ideia aprisionadora; que o enfoque científico, psicanalítico da religião ou de Deus, de modo algum, consegue descrever a realidade da religião, mas esvazia o medo religioso, ou o amor religioso, ou o ódio religioso, a um ponto em que o indivíduo não pode sentir horror ou medo, temor ou estupor. Essa é uma razão por que a modéstia desce sobre o analista; a arrogância, não. Mesmo o místico, que diz que tem um contato direto com Deus, deve, de fato, ter esvaziado a experiência religiosa, ainda que ela seja muito mais profunda do que a experiência de qualquer outro. Por mais que vivamos, não podemos possivelmente, como indivíduos, experimentar acontecimentos tais como esses registrados por uns poucos, mobilizados do todo da raça humana, que a despeito de diferenças de idade, de religião, de raça e de linguagem, estão todos em acordo. Observe, por exemplo, o que diz Dante no 36 Canto do “Paraíso” ou Krishna interrogando Arjuna, no Bhagavad gītā, por que ele pensa que ele pode compreender Deus.” (1973, pp. 65-67)
Vedas, Krishna e Arjuna em Bion: uma possível fonte
Krishna: “Bem que eu te falei. Espere só até que você venha a ser Arjuna.”
(Bion, 1975-1979/1996b, p. 03 )
Bion não foi o primeiro pensador, no Ocidente, a ser influenciado pelas filosofias da Índia. Antes dele, Platão, Schopenhauer, Hartman, Hegel, Nietzsche, Schelling, entre outros, sentiram-se atraídos pelo brilhantismo, complexidade e profunda herança filosófica do país. Para refletirmos sobre a possível influência dessa corrente no trabalho de Bion, entretanto, devemos primeiro esclarecer a que nos referimos: se a um corpo filosófico único ou a diversas escolas do pensamento; se à expressão de uma religião ou filosofia por direito próprio.
A Índia viu nascer seis grandes escolas de filosofia, chamadas Brahmavidyā (“conhecimento verdadeiro acerca da manifestação universal”), termo mais correto para o conjunto orgânico e integrado dessas escolas, já que todas elas são tentativas complementares de compreender e explorar a realidade, originando-se da mesma fonte: os Vedas (“conhecimento”), considerado a primeira obra sagrada da História.
Segundo a literatura hindu, existem muitos universos e, para cada um deles, um Veda. Como levaríamos, no mínimo, uns duzentos anos para ler todo o conteúdo védico, Krishna reuniu a essência, o fruto maduro de seu conhecimento em apenas dois livros: Bhagavad gītā e o Śrīmad-Bhāgavatam. Fonte de inspiração para Bion, o Bhagavad gītā é parte do épico Mahābhārata, escrito há, aproximadamente, 400 a. C.
Transmitido oralmente de geração em geração, os principais Vedas são compostos de quatro livros: Rgveda (Veda dos hinos), Yajurveda (Veda dos sacrifícios), Sāmaveda (Veda dos cantos rituais) e Atharvaveda (Veda do conhecimento pelos sacerdotes), que encontraram dois caminhos de revelação: shruti (“aquilo que é ouvido”), conteúdo transmitido diretamente por Krishna aos sábios, e smrti (“aquilo que é transmitido”), todas as literaturas, estudos e comentários que vieram a partir do que foi difundido por esses sábios, de acordo com o conhecimento védico, mas muito mais amplo.
Apoiado nos Vedas, o hinduísmo se fragmentou em seis escolas de filosofia, ou darçana (“ponto de vista”), que abordam a adoração de uma divindade em vez de outra. Essas escolas podem ser divididas ainda em dois grandes grupos: no primeiro, estão o sāmkhya, a ioga e o vedanta, denominados “sistemas maiores”, ou purushicos; no segundo, estão vaiśeṣika, nyāya e purvamīmāṃsā, classificados como “sistemas menores”, ou prakriticos.
A principal distinção entre esses dois sistemas está no fato de que o primeiro se concentra mais no espírito (purusha), enquanto o segundo, na matéria (prakriti). Apesar disso, eles não devem ser vistos como antagônicos ou concorrentes, já que purusha e prakriti são dois aspectos inseparáveis da mesma realidade, duas faces de svabhāva, isto é, a substância cósmica primordial anterior a qualquer diferenciação fenomenal de que é composto todo o universo.
Os sistemas de castas e experiências com grupos
P. A. – “Somos humanos e mostramos todas as fraquezas desta categoria biológica.
Não paramos de venerar e adorar porque a adoração e veneração são características básicas e fundamentais e portanto inalteráveis e inalienáveis;
Tentamos levar o fato em consideração.”
(Bion, 1975-1979/1996b, p.161)
cātur-varṇyaṁ mayā sṛṣṭaṁ/guṇa-karma-vibhāgaśaḥ/
tasya kartāram api māṁ/ viddhy akartāram avyayam//
“As quatro divisões da sociedade humana foram criadas por Mim, de acordo com os três modos de natureza material e o trabalho atribuído a eles. E, embora Eu seja o criador deste sistema de trabalho, você deve saber que Eu, sendo imutável, não trabalho.” (Prabhupāda, 1976, p. 183)
O sistema de casta indiano (varna), de acordo com os Vedas, são: śūdra, vaiśya, kṣatrya e brāhmaṇa. No śūdra predomina ignorância, a natureza material. No vaiśya, misturam-se ignorância e paixão. Considerada uma casta importante, vaiśya são os comerciantes, os responsáveis por todo o comércio da Índia (administram os bens materiais sob todas as formas).
No kṣatrya, misturam-se ignorância, paixão e um pouco de bondade, mas ainda predomina a paixão, com menos ignorância (como o bom político que possui ideais, o guerreiro que tem princípios éticos). Ele já possui um pouco de bondade, mas, se estiver sob o predomínio da paixão e da ignorância, irá praticar estupros e decapitações. Tal comportamento não aconteceria com um kṣatrya, pois nele predomina a ética. A ele seria comum, em momentos de trégua, conversar, beber e até jogar com os inimigos. Um kṣatrya tem como dever proteger os princípios religiosos da sociedade para que ela pudesse evoluir.
No brāhmaṇa predomina a bondade, embora ele também possa estar sujeito à paixão e à ignorância. Mestre espiritual, professor, intelectual, brāhmaṇa são pessoas com ideais maiores, menos vulneráveis ao modismo ou a puras seduções.
Fora do sistema, estão os párias, que não pertencem a nenhuma casta; são os intocáveis, aqueles que vivem à margem da sociedade. Se, por um lado, são excluídos das castas, por outro desfrutam da liberdade de não seguir as regras impostas por elas. Os párias criam suas próprias leis.
O sistema de castas, criado por Krishna, baseia-se nas qualidades (guna), no enquadramento aos modos da natureza material e no karma de um indivíduo. As castas definem as atividades que as pessoas devem desenvolver e a maneira de organizar um povo. Diferentemente do modo deturpado com que é praticado na Índia – nascer em determinada casta é estar fadado a permanecer nela do nascimento à morte –, no sistema deixado por Krishna uma pessoa poderia mudar de casta, dependendo do seu desenvolvimento.
O modelo de casta proposto pelos Vedas pode ter influenciado Bion em seu trabalho com grupo. A partir de uma tarefa, Bion observava quem teria mais condições para comandar ou realizar, respeitando cada indivíduo segundo suas qualidades e predisposição (guna) ou ações (karma).
Intuitivamente, ele põe em prática o sistema criado por Krishna, nos Vedas, também na guerra, quando cria agrupamentos de soldados, designando-os segundo uma ideia que lembra o modelo de castas. Durante duas horas e meia examinava um grupo de oito homens, os tais “grupos sem líder”. Eles tinham de construir uma ponte, sem instrução alguma.
O modelo de seleção que surgiu dessa experiência rompeu radicalmente com a prática psicológica até então. Graças a ela, cada membro passa a ser valorizado por sua contribuição ao grupo. Ao descrever os grupos de trabalho, ele afirma: “Em qualquer grupo podem ser discernidas tendências de atividade mental. Todo grupo, por casual que seja, encontra-se para ‘fazer’ algo; nesta atividade, de acordo com as capacidades do indivíduo, eles cooperam. A cooperação é voluntária e depende, em certo grau, da habilidade refinada do indivíduo” (Bion, 1975/1961, p. 131).
Arjuna, Bion e a guerra
ROLAND- “No dia seguinte fiquei estendido numa trincheira, porque o tiroteio
fora terrível. Estava indo tudo pelos ares. No início, fiquei apavorado. Aí, percebi que podia fugir. Não tinha percebido isso antes. Você não podia sequer se corajoso!” (Bion,1975-1979/1996a, p. 82).
P. A. – (…) “Krishna alertou Arjuna que ele podia não ser capaz de sobreviver à revelação da divindade que ele, Krishna, estava preparado a outorgar (…)” (Bion, 1975-1979/1996a, p. 158)
O Bhagavad-gītā narra o diálogo entre Krishna e o guerreiro Arjuna durante a guerra pelo domínio do norte da Índia. Batalham as dinastias dos Pandavas (o lado luminoso, composto por cinco irmãos, do qual Arjuna é o líder) e Karauvas (o lado sombrio, composto por cem irmãos, liderados por Duriodana). Krishna tem duas vantagens para oferecer aos combatentes, que devem escolher apenas uma delas: seu numeroso exército, ou sua própria ajuda na batalha. Duriodana escolhe o exército de Krishna, e Arjuna escolhe Krishna.
Antes de iniciar a guerra, entretanto, Arjuna questiona Krishna sobre a validade do confronto contra os próprios parentes. Nas respostas de Krishna, encontra-se grande parte dos conceitos essenciais da filosofia indiana. Ele diz para Arjuna não fugir de seu destino; que quem morre na verdade não morre; e quem mata na verdade não mata, pois na vida não há um ponto final, e, sim, apenas outra maneira de viver (Prabhupāda, 1976, p. XXXIII). Também Bion, quando lutava na Primeira Guerra Mundial, depara-se com uma situação conflitante, de medo, dúvida e incerteza. No terceiro seminário, realizado em 5 de julho de 1977, na Clínica Tavistock, ele relata:
“No Bhagavad-gita há uma descrição sobre um debate entre Krishna e Arjuna – o segundo atira suas armas ao chão, dizendo que não vai lutar; diante do inimigo, que incluía muitos de seus amigos, muitas das pessoas que ele amava e admirava, decidiu que não lutaria. Muito antes, em época que sequer sabia da existência do Bhagavad-gita, lembro de ter discutido com três amigos antes de uma batalha. A questão era: devemos lutar? Ou não? Devemos procurar nosso comandante e dizer, estamos renunciando, a guerra era contra nossas consciências? Dos quatro, fui o único sobrevivente dessa ação; nunca soube de qualquer batalha em que somente uma de três pessoas não tivesse morta no final. É impressionante considerar que foi esse preço a ser pago quando foi realmente necessário “pegar em armas”.” (Bion, 1990/2017, p. 55)
No capítulo “Observando os exércitos no campo de batalha de Kuruksetra”, do Bhagavad gītā, lemos a dificuldade de Arjuna em se manter na guerra e matar seus inimigos, a grande maioria formada por parentes e amigos. A recusa não era por fraqueza física, pois ele era considerado um grande guerreiro, mas por seu bom coração, uma característica de um devoto puro do Senhor. Arjuna se refugia na floresta, evitando momentaneamente o confronto com o inimigo. Bion, dotado de coragem, enfrenta a guerra e sobrevive.
Talvez a mensagem de Bion com essa postura seja a de que a vida é uma guerra interna, da qual não podemos refutar; ao contrário, devemos estar disponíveis a ela com lucidez, se possível (Scapatticci, 2018, p. 229). A guerra, nesse contexto, surge como batalha real e, também, metafórica, já que ambos enfrentam sua guerra interna e o destino que puderam dar aos resultados de suas reflexões no âmbito mental e da vida. Bion se refere a este mantra específico:
sañjaya uvāca/evam uktvārjunaḥ saṅkhye/rathopastha upāviśat/
visṛjya sa- śaraṁ cāpaṁ/ śoka-saṁvigna-mānasaḥ//
“Sanjaya disse: Arjuna, tendo assim falado no campo de batalha, pôs de lado seu arco e flechas e sentou-se na quadriga, com a mente tomada pela angústia.” (Prabhupāda, 1976, p. 35)
Bion, em Cogitações, comenta:
“A história do Engano é longa: no Bhagavad-gita, Arjuna é censurado por ter considerado que podia medir por meio de padrões humanos a moral, a onipotência ou atitude mental do deus; Jó foi reprovado por considerar que podia medir o Leviatã pelos métodos de mensuração disponíveis para medir seres humanos comuns. Muitos místicos foram capazes de descrever uma situação na qual se acredita que realmente existe uma força, um poder que não pode ser medido, pesado ou estabelecido por um mero ser humano dotado de uma mera mente humana. Essa assunção me parece ser um postulado profundo, até agora completamente ignorado, e mesmo assim as pessoas falam sobre “onipotência” como se soubessem o que isso significa, e como se ela tivesse uma conotação simples.” (Bion, 2000, p. 382)
Vedas: temor da morte; Bion: terror sem nome
SACERDOTE – “Medo da aniquilação? Talvez medo da “morte eterna”?”
P. A – “Alucinações?”
ESCOLAR – “Se é que são alucinações; mas será que os fatos são melhores?”
MORIARTY – “Ainda que fatos sejam terríveis, não são tão terríveis quanto
pensamentos”.” (Bion, 1975-1979/1996a, p.218)
Segundo alguns autores (Rezende, 2014, p. 125; Williams, 2018, p. 32), Bion se vale de três vértices do conhecimento – científico-filosófico, estético-artístico e místico- religioso – para conceber sua teoria psicanalítica. A questão do vértice místico-religioso não é concreta e/ou relativa a uma ou outra religião. Mas tem relação com “O”, com o mistério (que será mais bem descrito em outro capítulo). Sobre o vértice místico-religioso, voltemos ao Bhagavad gītā para aproximar outra fala de Bion:
De acordo com os escritos védicos, a mente é superior ao corpo, a inteligência é superior à mente, e ahankārah2 (“falso ego”, o próprio sentido de nossa existência, condicionado pelo apego à matéria) é superior à inteligência. Uma pessoa pode ser muito racional, mas, quando a vida dela está em perigo, vai além da própria personalidade e age com o seu falso ego, muitas vezes cometendo atos nada inteligentes. Ele se manifesta sob dois aspectos básicos: ahaṁ (“eu, eu sou”) e mam iti (“isto é meu”), e são os dois motores do ahankārah, ou seja, o sentido de individualidade e propriedade.
Bion apresenta um conceito importante em “Uma teoria sobre o pensar” (1962) denominado “terror sem nome”, que ele relata ser uma sensação de vazio e desamparo que sentimos sem nenhum motivo aparente e, em alguns casos, com frequência. O que provocaria esse buraco aparentemente impossível de se detectar? Em Cogitações, Bion diz: “medo e ódio = sentimentos poderosamente importunos; são, portanto, suscetíveis de chamar atenção para o self desconhecido ‘solução’ prematura e precoce para eliminar sentimentos de ódio e de terror ao ódio e ao medo” (2000, p. 327).
Quando o uso da inteligência está a serviço do falso ego, também considerado a energia mais sutil da matéria, o ahankārah (Ahankārah, o falso ego descrito nos Vedas, é parte da estrutura do funcionamento mental da humanidade, e pode-se fazer uma analogia com a importância fundamental do falso self de acordo com Donald Winnicott), ficamos fixados no plano material; daí a importância do falso ego para criar essas personalidades “falsas”. Contudo, segundo os Vedas, no ciclo de reencarnação, as pessoas teriam a possibilidade de, a partir de suas qualidades (guna) e atividades (karma), ir mudando, desenvolvendo-se, transformando-se. Bion, em Transformações, faz uma citação interessante a respeito da encarnação, “formas” e condição do indivíduo real:
“Recapitulando: através dos fenômenos podemos ser relembrados das “formas”. Através da “encarnação” é possível estar unido a uma parte, a parte encarnada da Divindade. Através de hipérbole, o indivíduo pode lidar com o indivíduo real. Através da interpretação psicanalítica, será possível efetuar uma transição entre conhecer os fenômenos do self real para ir sendo self real? Caso eu esteja correto em sugerir que fenômenos são conhecidos, mas realidade é “tornar- se”, a interpretação precisa fazer mais do que ampliar conhecimento.” (1965/2004b, p. 162)
O psicanalista inglês Winnicott apresenta um falso self cuja estrutura existe para que possa “defender” o verdadeiro self (Abram, 1996, p. 227).
Quando alguém compreende que não é esse corpo, mas, sim, uma alma espiritual, chega então ao seu verdadeiro ego. O ego existe. Condena-se o falso ego, não o verdadeiro ego. A literatura védica (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 1.4.10) diz que ahaṁ brahmāsmi: eu sou Brahman, eu sou espírito. Esse “eu sou”, o sentido do eu, também existe na fase de autorrealização liberada. Esse sentido de “eu sou” é ego, mas quando o sentido de “eu sou” é aplicado a esse corpo falso ele é ego falso. Quando o sentido do eu é aplicado à realidade, isto é o verdadeiro eu. Há alguns filósofos que dizem que devemos abandonar nosso ego, mas não podemos abandonar nosso ego, porque ego significa identidade. Devemos, é claro, abandonar a falsa identificação com o corpo (Prabhupāda, 1976, pp. 300-302).
O caminho apontado pelo Bhagavad-gītā é compreender o sofrimento que há em aceitar nascimento, morte, velhice e doença. O nascimento, ainda que não nos lembremos, é angustiante – a morte também. Ninguém quer ficar doente ou envelhecer, mas essa condição é inexorável. A menos que se ambicione mais do que a vida material pode dar, isto é, interrogar-se sobre questões existenciais, imateriais – Quem sou? Qual o sentido de minha existência? –, não haverá ímpeto para progredirmos espiritualmente.
A ideia de “O”
PAUL – “E a que deus você pensa que eu apelo? Ah, sim, eu sei – “O Deus de todos os sábios”. “E qual é esse Deus?” “Os homens sábios jamais o revelam”.” (Bion, 1975-1979/1996a, p. 56)
A ideia de “O” em Bion associa-se à primeira verdade, o que é original, inatingível e impenetrável por nós em nossa condição humana; aquilo que está em constante
evolução, o que expressa a realidade última, a verdade absoluta, o incognoscível, o númeno, a divindade, o infinito. “O” é a zona infinita, indiferenciada, que está fora do pensamento verbal.
“Nesta zona estão padrões asensoriais vazios; para usar uma expressão de Santo Agostinho, “formas in potentio”. Eles são mudos, no escuro, por assim dizer, e são ativados na zona indiferenciada infinita que compartilhamos com os outros. É um nível sem distinção entre interno/externo e self/outro.” (Vermote, 2016, p. 9)
Bion faz referência ao termo “O” como a experiência emocional que ocorre na sessão analítica. Quando uma relação de confiança e intimidade se estabelece entre analista e analisando, é possível haver verdade, o “O” comum, ou o “O” da sessão. Ele é percebido ou sentido a partir de um “fato selecionado” ou um ponto de intersecção percebido pela dupla em dado momento da análise. O “O” se dá a partir da experiência emocional vivida e se desfaz tão logo o entendimento começa a ser notado, a se fazer presente, e a fala tomar conta do momento. O falso ego, ou falsete, começa a tomar o espaço da sessão.
A partir dessa condição, um novo movimento se restabelece entre a dupla, agora de “O” para “K” (“conhecimento”), da experiência emocional para o conhecimento, da divindade para o divino, da verdade para o conhecimento. Dessa experiência, o espaço mental se expande para uma nova possibilidade, um novo ciclo de crescimento.
É nesse espaço que vivemos a ideia e o sentimento da origem em busca de um destino, que é a própria origem como pré-concepção. Como na frase dita por Deus a Adão, depois que ele e Eva comeram o fruto da árvore proibida: “Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gênesis 3,19). Algo, porém, nunca atingido enquanto viventes, uma vida de aproximações até a mais distante possível.
“Bion partiu da experiência em análise, onde a verdade daquela pessoa em particular, e da vivência ocorrida no aqui e agora da sessão, pode ser observada e pode-se pensar a respeito dela. Aquilo que o paciente é na realidade como ele pensa, como ele acha que pensa, os seus mais verdadeiros intuitos, desconhecidos para ele e o analista, vão aparecendo, ainda que parcialmente, em análise. Não se trata de saber exatamente como é a mente da pessoa, pois “O” é incognoscível, mas de aproximações cada vez mais próximas de quem aquela pessoa é ou pode vir a ser, sem que ele saiba.” (Sandler, 1997, pp. 313-314)
O analista sempre está em direção ao “O”, com foco no desconhecido. Lida o tempo todo com aproximações da Verdade, com verdades momentâneas, provisórias; é para onde caminha a análise: aproximações, transformações. A busca, não só do analista, mas também do paciente, é sempre por sinais de “O”. Para tal, quanto maior a capacidade negativa de suportar a dúvida, a frustração, o incerto, o desconhecido, mais êxito. É nessa condição de capacidade negativa que evoluímos para o crescimento, evoluímos para “K”, numa dimensão sensorial e em outra não sensorial, ambos vão caminhando para a verdade última, para o “O”.
“O”: de alma condicionada para alma liberada
SACERDOTE – “Você e outros que pensam como você frequentemente reivindicam ter autoridade científica para suas opiniões – às vezes, em oposição direta a uma visão religiosa, segundo a qual existe um Deus.” (Bion, 1975-1979/1996a, p. 167)
Segundo o conhecimento védico, a alma liberada não está condicionada, portanto não sofre a influência dos modos materiais que movem identificações falsas e apegos, necessidade de desfrutar do gozo sensorial, dos órgãos dos sentidos. Diferentemente da alma condicionada, a liberada tende a sair desse ciclo; portanto a necessidade de um apoio superior, como o dos Vedas.
Tanto nos escritos védicos como nos conceitos de Bion, embora exista a Verdade Absoluta, nunca chegaremos a ela, já que estamos dominados por sentidos imperfeitos. Podemos chegar apenas até um certo ponto ou muito próximo; segundo Bion, próximo de “O”, mas nunca em “O”. Para que a Verdade Absoluta ou ideia de “O” se revelasse para nós, ainda que nunca tivéssemos o domínio dela, seria preciso desenvolver nossos sentidos espirituais.
O “O” não é o objeto de nossa experiência; ao contrário, nós é que podemos esporadicamente ter acesso a essa dimensão, “chegar perto de Deus”, de Seu conhecimento mesmo sem o conhecer; ou seja, podemos conhecer os fenômenos mentais, mas não o nomeno, nunca chegaremos em “O”, mesmo com todas as aproximações. Nesse contexto, podemos dizer que a Deidade e “O” são a mesma coisa ou ainda pensar em Krishna como a Verdade Absoluta e “O”, uma de suas mutações, transformações.
Se Krishna tivesse uma forma, ele seria limitado. Forma tem os meros mortais. Bion afirma que as transformações em “O” acontecem fora do pensamento verbal, mas podem, por fim, ser representadas por transformações em “K”. “O movimento é sempre de ‘O’ para ‘K’ (Bion, 1970). Uma transformação em ‘K’ refere-se à representação de uma experiência que já aconteceu; e uma transformação em ‘O’, uma nova experiência” (Vermote, 2016. p. 9). “A crença de que a realidade é algo que é conhecido, ou poderia ser conhecido, é equivocada porque realidade não é algo que se presta, por si, a ser conhecido”. (Bion, 1965/2004b, p. 162)
Contudo é possível pensar numa evolução notória, um desenvolvimento na maneira de viver a vida e transformá-la. Bion, como Freud, também se apodera dessa condição em ir aos poucos modificando e ampliando suas percepções, conceitos e teorias; transcende e abdica muitas vezes em não se preocupar com as respostas para suportar a dúvida.
Esse movimento fica mais evidente quando Bion nos traz a ideia de que “O” também implica a instância fundamental de não saber. “Bion (1977) em Uma memória do futuro afirma: ‘Toda a minha vida eu me senti aprisionado, frustrado, atormentado pelo senso comum, pela razão, lembranças, desejo e – o maior de todos os terrores – compreender e ser compreendido. Esta é uma tentativa de expressar minha rebelião de dizer ‘Adeus’ a tudo isso” (Vermote, 2016.p. 07).
Segundo os Vedas, os verdadeiros sábios sabem que corpo nasce e está destinado a ser destruído; portanto ele não é tão importante quanto a alma; por isso não há motivo para lamentação.
Vihaya kaman yah sarvan/Pumams carati nishprhah/
Nirmamo nirahankarah/As santim adhigacchati//
“Só uma pessoa que tenha renunciado a todos os desejos para gratificação dos sentidos, que vive livre de desejos, que renunciou a todo o sentido de propriedade e está desprovida de falso ego, pode alcançar a paz verdadeira.” (Prabhupāda, 1976, p. 114)
Bion teve uma vida difícil, com inúmeras perdas desde sua infância: foi afastado abruptamente de seu país, de seus pais e da ayah para viver em um colégio interno na Grã-Bretanha; a ideia de Deus, o aterrorizador Arf Arfer (personagem imaginário criado na infância), a rígida educação religiosa, repetidos banhos frios e sermões sobre pecados, a ida ao front belga, ver a morte de perto após pular de um tanque e exigir que toda tripulação saísse antes dele; segundos depois o tanque foi bombardeado, a carreira de professor interrompida sob a acusação de fazer propostas sexuais a um aluno (acusação feita pela mãe do rapaz, que teria sido repudiada por Bion), novo período de guerra, a morte da esposa no nascimento da filha Parthenope.
Esse breve e incompleto percurso de Bion mostra o movimento de uma vida com várias transformações, possibilitando desapegos e proximidades de uma liberdade literária maior, como é possível perceber nos três volumes de Uma memória do futuro.
Bion, embora com toda influência religiosa, não chega a ser um religioso devoto, como a grandiosidade aparente no motivo religioso dos antigos poderia ser um triunfo da posição esquizoparanoide da humanidade. Tendo esta evoluído e adquirido melhor noção (correspondente à posição depressiva) de sua pequenez e limitação, as gigantescas, tremendas proporções escatológicas e universais advindas da religiosidade cedem lugar a uma humanização encolhedora – Bion é metafórico de seu tempo, com seus instrumentos “menores”. (Sandler, 1988, p. 13)
Vedas: ignorância, paixão e bondade. Bion: amor, ódio, conhecimento
SACERDOTE – “Será que poderíamos concordar que cada um de nós mantém uma busca pela verdade, mas que frequentemente os nossos caminhos parecem se separar?” (Bion, 1975-1979/1996b, p.101)
A liberação e a capacidade de não ficar tão envolto ao falso ego seriam a possibilidade de mudar a situação do ser condicionado sob a influência dos modos da natureza material (sattva-guna, raja-guna e tama-guna, ou “bondade”, “paixão” e “ignorância”, respectivamente). Baseado no conhecimento védico, a condição de liberação se inicia com a purificação dos sentidos. Bion relata que é através de uma “mente primordial”, e não de uma mente primitiva*, que as aproximações de “O” (ou da Divindade) tornam-se possíveis. “Nossa mente primordial é uma relíquia de nossa herança ancestral, como brânquias, evidência de uma estrutura anatômica semelhante a um peixe ou de uma cauda rudimentar”. (Bion, 1978/1984, p. 16)
(* A mente primordial seria a presença de restos embrionário próprios à nossa ancestralidade, algo primordial na mente, não explicado pelos estágios iniciais de relações de objeto no desenvolvimento do bebê e que permanece na mente do indivíduo ao longo da vida (Braga & Korbivcher, 2018, p. 6).)
(** Entendemos a mente primitiva enquanto um conceito que se refere à expressão dos estados iniciais do desenvolvimento do psiquismo humano, ou seja, aos níveis mais precoces da organização mental e suas manifestações (Carvalho & Costa, 2002, p. 1).)
Bion, em “Transformações”, usa o termo “incognoscível”, no sentido kantiano, pare referir à realidade última do objeto e afirma que o objeto de conhecimento em psicanálise é a realidade psíquica: angústia, amor, medo, ódio; enfim, emoções básicas que são tratadas por psicanalistas e que não são apreendidas por meio dos órgãos dos sentidos, embora as manifestações físicas possam ser percebidas através de transformações verbais ou corporais.
Junqueira Filho, em seu livro “Sismos e acomodações”, afirma que, no entendimento de Bion, “toda experiência emocional implica o relacionamento entre duas personalidades, as quais poderão se vincular através de três tipos básicos de emoção: amor (love), ódio (hate) e conhecimento (knowledge)” (2003, p. 112). Por vínculo, Bion descreve uma experiência emocional em que duas pessoas ou duas partes de uma pessoa estão relacionadas entre si.
Bion utiliza a letra “K” para se referir ao vínculo entre um sujeito que procura conhecer um objeto que se preste a ser conhecido e tem a particularidade de ser ativo no que se refere à experiência emocional. Diferentemente dos vínculos “L” e “H”, “K” está ligado a uma expectativa ainda não realizada, de vir a saber. A dor ou a frustração estão inerentes a esse vínculo.
Bion, no capítulo 3 de “Elementos de psicanálise”, propõe que os elementos psicanalíticos e os objetos que deles derivam possuem três dimensões: uma extensão no domínio dos sentidos; outra no domínio do mito; e uma terceira no da paixão. Segundo Junqueira Filho:
“[Bion] Define “paixão”, ou sua falta, como sendo o componente intenso e caloroso derivado de L, H e K, sem, no entanto, expressar violência: esta, só estará presente quando o processo for acompanhado de voracidade. Neste contexto, “paixão” vem a ser uma das dimensões que L, H ou K devem possuir para serem reconhecidos como elemento presente, não devendo ser confundida com sua evidência fornecida através do sensorial. Em qualquer episódio, precisamos correlacionar uma evidência fornecida pelos sentidos, com a evidência senso-apreensível (sensuous, no inglês), mas talvez não-sen-sorial de paixão.” (2003, p. 113)
“O conceito de “paixão” associado com vínculos “L”, “H” e “K” parte de todo o conhecimento de Bion com as mais diversas experiências com o ser humano, porém essa aproximação pode ser percebida na ideia de vínculo também com as escrituras indianas, em especial com o Bhagavad gītā. Em Elementos de psicanálise, sua investigação psicanalítica formula premissas que, como as da filosofia ou teologia, são diferentes daquelas da ciência comum. Os elementos psicanalíticos e os objetos deles derivados têm extensões nos seguintes domínios: do sentido, do mito e da paixão.”
“Bion usa a notação “R” derivada da palavra “razão” e das “realizações”, que visa representar uma função destinada a servir às paixões, quaisquer que sejam elas, conduzindo-as à sua dominância no mundo da realidade, e acrescenta entender por paixões tudo que estão incluídos em “L”, “H” e “K” (Bion, 1963, p. 20). Todos os vínculos descritos por Bion estão compostos com uma certa “dose” de paixão, bem como as dimensões por ele descritas, embora reserve para as dimensões do sentido, do mito e da paixão um predomínio específico, como mencionado.”
Verdade e Mentira, uma experiência emocional?
MENTE – “Oi! De onde foi que vocês saíram?” (Bion, 1975-1979/1996b, p. 06)
Certa vez, a Mentira disse à Verdade:
― Está um dia lindo, você não acha?
A outra concordou; afinal, era mesmo verdade. A Verdade e a Mentira caminharam juntas até chegarem a um lago. Tocando a água, a Mentira propôs:
― Uau! A água está ótima! Que tal tomarmos um banho?
Apesar de desconfiada, a Verdade testou a temperatura da água, se despiu e entrou. Então, sorrateiramente, a Mentira saiu da água, vestiu as roupas da Verdade e fugiu.
Quando se deu conta do que havia acontecido, a Verdade, nua, tentou alcançar a Mentira. Passou entre as pessoas, que se chocavam com sua nudez, desviavam o olhar, com desprezo, raiva e vergonha. Sem conseguir, entretanto, recuperar as próprias vestes e se recusando a vestir as roupas da Mentira, a Verdade se escondeu para sempre no fundo do lago.
A Mentira, por sua vez, continua a correr mundo, vestida com as roupas da Verdade, tranquilamente. Afinal, é muito mais fácil aceitar a Mentira com as roupas da Verdade do que a Verdade nua e crua (Gérôme, 1896)*.
(* Gérôme, J. L. (1896). A Verdade saindo do poço. Parábola. Pintura: óleo sobre tela. Moulins, França: Museu Anne-de-Beaujeu.)
No caminho inverso ao da Mentira que rouba as roupas da Verdade, há um passatempo (história) de Krishna sobre a verdade que desnuda a mentira e nos lembra não só da importância de saber a verdade, mas, principalmente, de a colocar em prática.
Certa vez, num dia quente indiano, algumas jovens brincavam em águas sagradas, prática proibida na Índia. Então penduraram seus lindos saris coloridos nos galhos da árvore que sombreava o rio. Depois de um tempo, quando decidiram sair, não encontraram mais suas roupas. Procuravam com o olhar, sem poder sair do rio e, quando já começavam a se desesperar, apareceu o luminoso Krishna, segurando os saris nos braços.
― Vocês sabem que as águas sagradas não são para diversão ― ele disse, ao mesmo tempo risonho e sério. ― Tomem seus trajes. Dá próxima vez, eu não os devolverei.
As jovens, felizes, mas envergonhadas, agradeceram a Krishna e prometeram não repetir a infração.
Krishna revelou os mistérios da existência – os da vida e os da morte – aos sábios. Através do tempo e das palavras, contos e cantos, eles os revelaram aos seus discípulos. Estes, por sua vez, levaram-nos ainda mais longe, transmitindo-os a outros discípulos, atravessando eras… isso até chegarem à voz doce das mães que embalavam o sono e os sonhos de seus bebês com mantras e histórias. Um dia, chegaram aos ouvidos de uma certa menina, que também cresceu, e os sussurrou nos ouvidos do bebê Bion, até seu afastamento de sua terra natal, talvez aqui o primeiro contato com o Bhagavad gītā e não na vida adulta, como é de nosso conhecimento. Como na tradição shruti (“aquilo que é ouvido”) e smrti (“aquilo que é transmitido”), ele trouxe o conhecimento até nós, tecido com fios dos Vedas, de Freud, de Melanie Klein e de tantos outros, além dos fios de sua própria vida e da sabedoria que a permeou, para deixar um tecido repleto de sentido. E que, agora, de minha parte, levo ainda um pouco mais adiante… até você.
Verdade e Mentira são partes que se falam, se comunicam; dependem uma da outra para existir. Mas, levando-se em conta o proposto por Bion e o Bhagavad gītā, talvez possamos cogitar a existência de uma Verdade Absoluta que não precise, necessariamente, da Mentira para ser validada. Na parábola acima, é possível pensar em uma experiência vivida; porém, como acontece quase sempre, só a Mentira fala. A verdade não precisa de muito esforço para existir, enquanto a mentira precisa se vestir de “Verdade” para isso.
Em boa parte de sua vida, Bion preconizou que a mente se alimenta da verdade assim como o corpo necessita do alimento. Seus trabalhos desenvolvem-se de uma condição do conhecimento ao ser. Esta última dimensão, afinal, está sempre presente.
Penso ser esse o caminho que nos direciona os Vedas, o Bhagavad gītā, aceitando nossa condição imperfeita, nossa guerra interna constante. Fazendo uso de tudo o que nos apresenta – castas, gunas, modos, conflitos, ignorância, paixão e bondade –, temos a oportunidade de também alcançar nosso objetivo, por mais que vivamos e teimamos, podemos manter o vínculo de Fé (Bion, 1970) na busca da Verdade Absoluta.
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RESUMO │ SUMMARY
W. R. Bion, Vedas e Bhagavad gītā: aproximações e experiência emocional
Este artigo aborda aspectos da cultura e dos costumes indianos com o objetivo de propor possíveis aproximações entre o hinduísmo e a obra de Bion. Para isso, tece conexões entre as experiências vividas pelo psicanalista durante sua infância, na Índia, e como essas vivências influenciaram o seu trabalho. Esta exposição oferece ainda subsídios para falar sobre psicanálise e as transformações de “O”, em “sendo”, propostos a partir da comparação de trechos do Bhagavad gītā e dos conceitos desenvolvidos por Bion. │
W. R. Bion, Vedas and Bhagavad gītā: approximations and emotional experience This article approaches Indian culture and customs aspects aiming to propose possible approximations between Hinduism and Bion’s work. To that end, it build connections between the experiences lived by the psychoanalyst during his childhood in India, how these experiences influenced his work. This exhibition also offers subsidies to talk about psychoanalysis and the transformations from “O” to “being”, proposed from the comparison of Bhagavad gītā passages and the concepts developed by Bion.
PALAVRAS-CHAVE │ KEYWORDS
Bhagavad gītā. Vedas. Psicanálise. Bion. Verdade. │ Bhagavad gītā. Vedas. Psychoanalysis. Bion. Truth.
FRANCISCO A. DUARTE
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